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"Se queremos democracia verdadeira, temos que ter expressão cultural"

Com avental vermelho, do Internacional, Olívio Dutra nos recebeu no apartamento onde vive há décadas, na Avenida Assis Brasil, zona norte da capital. Explicou que estava ajudando a Judite, sua companheira há mais de 50 anos, nas tarefas domésticas


Olívio Dutra (Foto: Reprodução/Facebook)

Sindiserf-RS

Aos 77 anos, Olívio é, talvez, o político mais respeitado do PT-RS e uma referência para os gaúchos. Bancário aposentado, foi líder sindical, ajudou a fundar o PT e a CUT, foi deputado constituinte, prefeito de Porto Alegre (1989-1993), governador do Rio Grande do Sul (1999-2003) e ministro das Cidades do governo Lula (2003-2005).

Rodeado de livros, Olívio conversou com o Sindicato dos Servidores e Empregados Públicos Federais do Rio Grande do Sul (Sindiserf/RS) sobre a homenagem da escola de samba Império da Zona Norte, sua trajetória na política, fez reflexões acerca do avanço do conservadorismo e do neoliberalismo, a realidade dos servidores públicos e a necessidade de defendermos a democracia.

Confira a íntegra da entrevista:

Sindiserf: Como o senhor recebeu a notícia de que seria homenageado pela Império da Zona Norte?

Olívio Dutra: Com surpresa e alegria. Uma homenagem que jamais imaginava, em especial da Império da Zona Norte, uma escola aqui do bairro onde moro. Uma escola dirigida por trabalhadores, gente modesta, microempreendedores, mulheres, o que é importante… Me senti muito honrado realmente e até me perguntando como retribuir. Eu não tenho dinheiro e espero que não estejam me homenageando, como de fato não estão, por conta de contribuições monetárias, porque isso a gente não tem, mas a gente se incorpora com o movimento da escola para fazer um bom carnaval. A escola merece, já homenageou figuras importantes e vai continuar homenageando, mas para o carnaval que vem, o motivo do samba foi eu, e ficou muito bom para o meu gosto. Tenho ido aos ensaios e brinco com eles que essa homenagem é muita coisa para um modesto bossoroquense.

Um dos compositores do samba enredo “O Galo Missioneiro Canta na Zona Norte” afirmou que uma das inspirações que ele buscou, foi Sepé Tiaraju, um arquétipo da resistência missioneira e da cultura indígena. Como o senhor vê isso?

O Sepé Tiaraju é um ícone da história missioneira, um índio herói daquele povo e que liderou uma comunidade que por mais de 150 anos viveu muito bem naquela região. As missões jesuíticas, que são sete do lado de cá e 23 do lado de lá, eram espaços onde o ser humano vivia harmoniosamente entre si e com a natureza. Enfim, o Sepé é uma figura emblemática, simbólica e me sinto muito honrado dele ter sido a inspiração. Eu sempre brinco, tem um galo missioneiro autêntico, que é meu amigo e grande músico, Pedro Ortaça. Eu sou o galo missioneiro genérico. Mas muito honrado com a homenagem inspirada neste herói latino-americano, brasileiro, gaúcho, missioneiro.

Fale sobre a sua relação com o carnaval.

Cheguei em Porto Alegre em 1970 e não tinha uma prática carnavalesca lá em São Luiz Gonzaga. Eu vim a ter contato com o carnaval aqui em Porto Alegre, através do movimento sindical e popular, comunitário. E claro, depois como prefeito fiz questão de mostrar não só o apoio, mas o respeito ao movimento carnavalesco. Como governador, também fiz questão de dar continuidade a essa relação com o carnaval, que é uma expressão da cultura popular muito bem enraizada e espraiada no Brasil e no Rio Grande do Sul.

Qual a importância da arte e da cultura como formas de resistência a governos conservadores e ao próprio sistema capitalista, que é por si só, excludente?

É a forma mais rica e desafiadora para fazer o enfrentamento. Não é a toa que as ditaduras e os governos de direita, como o que estamos vivendo hoje, falsamente democráticos, tem um medo tremendo da cultura. Eles procuram estreitar os espaços onde o povo possa se manifestar aberta e livremente. Estamos vivendo esse tempo hoje, com o governo que reduz espaços de atuação popular, da expressão de forma livre e espontânea. A área da cultura, que é muito rica, diversificada, variada, é uma área de criação e não de imposição. A cultura está sempre em questão e questionando as coisas para ter uma relação do ser humano consigo mesmo, com os outros, com a natureza, com a vida, com o passado, presente e futuro de forma inovadora, rica, transformadora. É no espaço cultural que se dá o bom embate democrático. Se queremos democracia verdadeira temos que ter expressão cultural da mais variada em todos os espaços. Nenhum governo ou autoridade pode determinar o que é cultura. Não se pode ditar regras para conduzir o povo nas suas manifestações culturais, com visão de humanidade, do respeito ao ser humano, a dignidade da pessoa, do enriquecimento pessoal e coletivo, a ideia da solidariedade, da relação com o lado espiritual da vida e tudo isso com alegria, sendo uma provocação positiva para o exercício pleno da cidadania.

O senhor já foi funcionário do Banrisul, qual sua relação com o setor público?

Entrei por concurso em 1961 no banco do estado do Rio Grande do Sul, lá em São Luiz Gonzaga, e me aposentei aqui em Porto Alegre, em 1996. O bancário do Banrisul não é regido pelo Estatuto do Servidor Público, entra por concurso, mas é regido pela CLT. Depois fui prefeito, governador, isso sim, cargos públicos, também fui deputado federal constituinte, outra função pública exercida pelo voto. Tem que respeitar a coisa pública porque o mandato, o cargo público não dá o direito do sujeito se apropriar desse espaço, do dinheiro público. Fui trabalhador de um banco público e quero que sempre seja público. Aliás, como governador impedi que fosse privatizado naquela época, como até hoje existe a ameaça de privatização.

Além do Banrisul, há inúmeras empresas públicas ameaçadas de privatizações, nos três níveis de governo…

É a ideia do chamado Estado mínimo, do capitalismo na sua fase neoliberal. A gente se pergunta mínimo para quem? É mínimo para a maioria da população que deixa de ter serviços prestados e é máximo para o setor privado, que sem ter investido nessas empresas (foi o poder público que investiu), adquire por pouco mais que quase nada, às vezes até quase de graça. É uma transferência de renda dos que tem pouco e precisariam muito de um Estado eficiente para quem tem quase tudo porque concentra renda de forma espantosa neste país. São esses grupos que estão adquirindo essas empresas, até mesmo grupos estrangeiros estão adquirindo empresas estratégicas para o desenvolvimento mais harmonioso e espraiado do país. E isso é uma visão que fere o princípio do compartilhamento da riqueza com aqueles que a produzem, que são os trabalhadores do campo, da cidade, o micro, pequeno e médio empreendedor. A alternativa para isso é o processo democrático que coloque o povo como sujeito e não objeto da política. A democracia não é um espaço mitigado como quer o atual governo, sem povo. Democracia é um espaço de plena liberdade, responsabilidade e direitos. Temos que enfrentar esse processo de privatização e defender o Estado, não o Estado máximo, como eles sempre acusam o pensamento de esquerda, de querer o Estado máximo, pesado, sobrecarregado de empregos… Não, nós queremos o Estado do tamanho das necessidades do povo, com capacidade de empreender, executar políticas públicas e garantir ferramentas que possibilitem que o estado e o país se desenvolvam de forma harmoniosa, desconcentrando renda. E o Estado sob controle público e não privado, é aquele que pode funcionar bem e melhor não para poucos, mas para a maioria da população.

O senhor afirma que “o povo tem que ser sujeito e não objeto da política”. De que maneira podemos conscientizar o povo disso, quando muitas vezes coloca a política como algo muito distante do seu cotidiano?

Eu não acho que o povo coloca a política como algo distante, o povo é esperto. Os políticos tradicionais se aproveitam da necessidade que o povo tem de resolver os problemas o mais rápido possível. O político esperto se coloca na frente, não para representar o povo, mas para substituir o povo e vim para dentro da máquina do Estado para fazer a sua política, a sua maneira, em seu benefício, da sua carreira ou em beneficio dos grupos econômicos que lhe financiam, que lhe afagam o ego. O povo tem que ser sujeito e não objeto da política num processo em que todos os movimentos, sindicais, sociais, populares, a imprensa, a mídia, as artes, as culturas sejam instigadores da participação consciente, que possibilite que as pessoas não só sofram na política, mas que elas possam influir, propor, fiscalizar e acompanhar a decisão de políticas que tem que serem criadas de forma coletiva, solidária em espaços democráticos e não no tapetão dos grupos econômicos interessados em pegar dinheiro público ou nos gabinetes dos governantes. Então não tem uma receita. Isso é um processo político e é por isso que a democracia é fundamental. Defender a democracia que foi golpeada, mais uma vez, é fundamental porque sem isso, temos a perda de direitos passados, presentes e futuros. Estão aí essas reformas que fizeram alterações trabalhistas e na previdência social. É lutando por democracia, mas a radicalidade democrática, não a democracia formal em que se tem um cidadão que foi eleito via fake news e está lá, eleito democraticamente. Precisamos qualificar a democracia, resgatá-la para que não mais sofra golpes com nomes diferentes, como o último que aconteceu e possibilitou a eleição do grupo que está aí. E para isso tem que ter mobilização social, organização popular, comunitária, em todas as áreas. Os empresários tem que dar as caras e dizer qual o desenvolvimento querem para o país, é esse subordinado aos interesses dos grandes grupos internacionais das maiores potências?

Estamos vivendo, em diversas regiões do mundo, o avanço do conservadorismo de maneira bastante agressiva. Só para citar o continente americano, temos Trump nos Estados Unidos, golpe na Bolívia, o Chile está em erupção, a direita ganhou as eleições no Uruguai e no Brasil temos um governo que além de ter nenhum programa para melhorar os índices econômicos, apresenta aspectos fascistas. Como sair disso?

Não há saída mágica. Eu penso que as lideranças partidárias do campo popular democrático tem muito que aprender na relação direta com o povo, com os movimentos sociais e muito a tirar das experiências que adquiriram participando de governos em conjunturas diversas. Há sim de fazer uma reflexão das lutas sociais populares no nosso país, no mundo e as experiências de lutas concretas, objetivas. Elas não nasceram de geração espontânea, as lutas sociais tem uma longa trajetória na história da humanidade. O Estado que vivemos e queremos sob controle público e não privado, já foi um avanço civilizatório. A democracia é uma obra aberta, nunca está concluída. Então tem um processo sim, nesta fase neoliberal do capitalismo que está andando pelo mundo afora, mas não tem nenhum país onde o neoliberalismo esteja dominando que tenha solucionado os problemas sociais, a não ser gerando mais guerras para aumentar a produção de armas, de produtos químicos, de venenos. Esse é o resultado do capitalismo neoliberal, não é de solucionar nenhum problema social das maiorias, ao contrario, é agravando os problemas. A saída para a humanidade não é desta forma, mas eu também não defendo que as experiências socialistas da Rússia, da China, de Cuba são excepcionais. Deram grandes contribuições para conter a ganância do capitalismo, mas depois também entraram num processo que está longe de ser o ideal para nós. Não temos que imitá-los, mas tirar boas e sérias lições de como é possível alterar para melhor a vida de muitas pessoas com tanto que a gente garanta a democracia que o povo seja sujeito e não objeto da política. E uma democracia que se renove pela força dos movimentos sociais e pela força da educação pública de qualidade, em todos os níveis. Em que professores, alunos, funcionários de escolas sejam também sujeitos do processo junto com pais e a família. Uma educação sempre desabrochando com criatividade para enfrentar os desafios novos da ciência e da tecnologia. Temos que investir sempre na modernidade e modernização para reduzir o esforço físico do trabalho, possibilitar que as pessoas tenham uma jornada menor, sem redução de salário, para conviver na sua comunidade, ter atuação política, protagonizar melhor os processos de radicalidade democrática. Tem um futuro pela frente a ser conquistado com participação consciente e ampliada e isso significa que não é atomizar as ações, como é o objetivo do neoliberalismo, onde cada pessoa é um empreendedor de si mesmo, não tem patrão, mas também não tem direito algum. Temos que restabelecer a solidariedade entre gerações, entre homens e mulheres, entre o homem e a natureza, com a possibilidade enorme que a ciência e a tecnologia podem trazer sob controle público para o bem da humanidade.

Diante desse contexto, qual a importância das eleições municipais de 2020?

Eleições são sempre importantes, principalmente as locais porque exercemos a nossa cidadania no município. Já passamos por ditadura e vimos que as ditaduras tem medo de eleições como o diabo tem da cruz. Temos que garantir que haja eleições democráticas, livres, soberanas, sob o controle da justiça eleitoral, portanto os cidadãos tem que estarem muito atentos e ir para as eleições com a consciência de que votam, não em um indivíduo isolado para resolver o seu problema, mas em representantes de um projeto que tem que ser discutidos antes das eleições para depois executarem o projeto com o qual se comprometeram com o eleitorado. Eleição é uma ótima oportunidade para fazer um debate político sobre o que é o Estado? Não o estado federado, mas esta estrutura: município, estado, união, os poderes executivo, legislativo, judiciário, nos três espaços, tudo isso é o Estado brasileiro. Muito disputado e onde as elites brasileiras sempre tiveram uma presença muito grande, inclusive por dentro dessa máquina que a coloca sob o seu controle. Essa máquina funcionou sempre muito para baixo, puxada pelas famílias tradicionais do tempo ainda da escravatura, que ocuparam a máquina do estado. É preciso democratizar, fazer o Estado funcionar melhor para a maioria da população. De novo é uma questão política e é bom lembrar, que isso não é uma visão meramente partidária, embora a democracia não se faça sem partidos, mas partidos com programas ideológicos e programáticos claros, não um banco de negócios para distribuir cargos e se aproveitar do dinheiro público. É fundamental que possamos ter um estado sob um controle diferente do que temos desde o Brasil colônia. Um Estado que a cidadania consciente possa fazê-lo funcionar no interesse efetivamente público e não pessoal, funcionar com eficiência, se apropriando da ciência e da tecnologia que tem que ter espaço para a sua produção nas universidades públicas, nos institutos de pesquisa que tem que ser estimulados, sem nenhuma ameaça de censura, onde os funcionários não tenham medo de perder o emprego. O clima democrático tem que ser resgatado para que autoestima do povo brasileiro possa fazê-lo caminhar de novo no rumo de ser protagonista do processo que precisamos desencadear para o Brasil ser, não só, uma potência no futuro, mas um país de justiça, igualdade e fraternidade, desenvolvido de forma desconcentrada e descentralizada.

Qual a importância dos sindicatos hoje em dia?

Os sindicatos sempre foram importantes, tem uma história da luta social no mundo inteiro, desde que surgiu o capitalismo. Já na Revolução Francesa, havia as associações de pequenos artesões e tal, que ajudavam as famílias de operários, quando perdiam um braço, uma perna ou morriam, pois não havia assistência social nenhuma no começo do capitalismo e o surgimento dos sindicatos, das categorias se organizando, lutando pelos seus direitos, se afirmando como sujeito da política foi um avanço significativo. Evidente que depois em várias partes do mundo, o estado foi se mexendo para ter controle dos sindicatos, como no caso aqui do Brasil. A CLT foi um avanço enorme na década de 40, no governo de Getúlio Vargas, mas embutiu o imposto sindical para manter os sindicatos no cabresto, para dependerem de um dinheiro público. Os sindicatos tinham que prestar contas para delegacias regionais do trabalho, para o Ministério do Trabalho, não podiam gastar aquele dinheiro na organização social, comunitária, na greve, é uma questão séria. O movimento sindical, depois do último golpe, sofreu enormemente. Nós levamos para a Constituinte, acabar com o imposto sindical, mas as coisas se reverteram e o centrão, junto com a Confederação Nacional da Indústria e setores do movimento sindical, inclusive de esquerda, acertaram de manter o imposto. Se naquela época, o movimento sindical que estava em ascensão tivesse afirmado o fim do imposto sindical, teria saído com uma autoridade enorme. Passou-se o tempo e a elite brasileira viu que o sindicalismo brasileiro estava perdendo força por uma série de razões e deu a pá de cal, acabando com o imposto sindical e impedindo que qualquer decisão dos trabalhadores de contribuir para os sindicatos, a entidade é que tem que cobrar. Isso é uma violência contra a autonomia e autoridade do movimento sindical popular operário, além do que, este governo está constantemente incentivando o individualismo, o estilhaçamento das coisas, o trabalhador depende de si mesmo, não depende de nenhuma organização. Os sindicatos são instrumentos de trabalho, ferramentas importantes numa democracia para que a classe trabalhadora possa enfrentar o poder do empresariado, do capital. Vivemos num país que tem cinco grandes milionários com uma riqueza igual a de 110 milhões de brasileiros. Imagina uma concentração de renda desse tamanho, dá para dizer que vivemos numa democracia? Democracia não é só direito de ir e vir, de falar, mas também o compartilhamento na riqueza por todos produzida. Portanto, é fundamental desconcentrar essa renda e para isso as entidades sindicais, sociais, populares tem um enorme e importante papel.






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