Extra Classe
De acordo com a economista e técnica do Dieese, Anelise Manganelli, mestre em economia pela PUCRS e integrante do grupo de estudos EcoFem, da Ufrgs, o valor superior a R$ 1 trilhão considerou somente os débitos de PIS, CSLL e Cofins de empresas que devem mais de R$ 150 mil. Como a maioria das empresas devem valores menores, o total de receitas que deixam de entrar para a seguridade devido à sonegação pode ser muito superior ao valor constatado. “Antes de exigir sacrifícios dos trabalhadores com uma reforma da Previdência que corta benefícios de quem ganha menos, o governo deveria cobrar uma contribuição para o ajuste fiscal dos que estão no topo da pirâmide de riqueza. É o caso das grandes empresas, bancos, financeiras, redes de varejo, grupos de comunicação e mais de 200 empresas de investimentos que acumulam dívidas ativas superiores a R$ 150 mil por CNPJ com a Previdência” ressalta a economista nesta entrevista.
Extra Classe – A proposta de reforma da Previdência usa dados distorcidos e argumentos falsos para justificar a alteração no sistema de seguridade social do país. Quais informações não batem com a realidade?
Anelise Manganelli – A PEC 06/2019 apresenta uma justificativa enviesada, uma vez que ignora um conjunto de elementos que determinam a capacidade de manter a Seguridade Social, uma das políticas públicas mais antigas e que já passou por inúmeros ajustes para se adequar ao perfil populacional. A proposta de reforma é fundamentada em dados contestáveis, e um deles é a dívida das empresas junto à Previdência, que totaliza R$ 1,055 trilhão.
EC – Como chegou a esse montante de R$ 1,055 trilhão?
Anelise – Os dados foram fornecidos pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e indicam que as dívidas de empresas com a seguridade social atingiram, em novembro de 2018, o total de R$ 1,055 trilhão. Esse total é composto por: R$ 484,3 bilhões relativos a débitos de contribuições previdenciárias dos empregadores e dos segurados, contribuições devidas a terceiros, assim entendidos outras entidades e fundos, e a contribuição para o salário-educação; R$ 228,6 bilhões são débitos de PIS e Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL); e R$ 342,1 bilhões referem-se ao não repasse da Contribuição para o financiamento da seguridade social (Cofins).
EC – Por que a PGFN afirma que o estoque da dívida ativa previdenciária é de R$ 510,3 bilhões?
Anelise – A Procuradoria trabalha com o valor de R$ 510,3 bilhões, mas não fornece detalhes e como a busca é por CNPJ, o cidadão não consegue listar todas as dívidas que compõem esse valor. Possivelmente trata-se do conjunto de dívidas possíveis de serem cobradas, conforme a classificação feita pela própria Procuradoria.
EC – O que deprecia o orçamento da seguridade?
Anelise – A depreciação recente do orçamento da seguridade advêm de diversas vertentes, a queda do PIB, as políticas de austeridade (que reduzem a base contributiva), o aumento do desemprego (que em 2014 era de 6,1% e atingiu 13,1% em 2018), as renúncias fiscais, as desonerações tributárias e a Desvinculação de Recursos da União (DRU). Em 2017, foram R$ 287 bilhões em renúncias, sendo que o orçamento da seguridade em 2017 fechou com resultado negativo de R$ 56 bilhões (de acordo com dados da Anfip). Até 2015, o resultado da seguridade era positivo, tendo registrado em 2015 superávit de R$ 13 bilhões. Somente em 2016 e 2017 registram-se resultados negativos – quando houve queda do PIB de 3,55% e 3,48%, respectivamente. E se nossa economia tivesse crescido 2%? Certamente, o resultado seria outro.
EC – Esse valor pode ter sido subestimado?
Anelise – No montante dos débitos de PIS, CSLL e Cofins foram consideradas somente as empresas que devem mais de R$ 150 mil, portanto, o total das dívidas deve ser ainda maior. Considerando a estrutura empresarial brasileira, em que a maior parte dos estabelecimentos é de pequeno porte, deve haver um contingente significativo de débitos desprezados.
EC – Como a PGFN classifica os devedores?
Anelise – As dívidas junto à Previdência recebem uma classificação pela PGFN quanto ao tipo de inscrição do débito, conforme Tabela 1. Verifica-se que 73,3% do débito está classificado “em cobrança”, o que, de acordo com a PGFN, indica que o débito está em situação irregular, e a PGFN está buscando patrimônio do devedor para saldá-lo; e 17,5% do total é classificado como “Benefício fiscal”, que trata de débito parcelado. Nesta situação, o pagamento é mais ou menos moroso, a depender da quantidade de parcelas concedidas pela lei que instituiu o programa de parcelamento. E nos casos de parcelamento, vale destacar que muitos programas de parcelamentos previdenciários no Brasil são longos (diferente de outros países), podendo chegar a 240 meses de duração, bem como da longa tramitação dos processos judiciais, com todos os recursos que lhe são inerentes. Além disso, se concede descontos de até 90% sobre multas e juros.
EC – Quem são os grandes devedores da Previdência?
Anelise – Ao analisar os grandes devedores com a classificação “em cobrança” (aquela que está se buscando patrimônio), verificam-se empresas ativas, conhecidas e que registram lucros significativos nos últimos anos, caso de bancos como o Itaú, e/ou empresas de investimentos como a J&F Investimentos, que possui em seu portfólio empresas como a JBS (líder em processamento animal) – que em 2018 fechou com lucro de 563 milhões – e ainda outras empresas como Flora (líder em segmentos de limpeza doméstica e higiene pessoal), Eldorado (grande empresa de celulose) e o Banco Original (100% digital) – todas empresas que vêm registrando lucro no último período. Há, pelo menos, nessa lista de devedores à Previdência, mais de 200 empresas de investimentos. Entre as empresas com dívidas classificadas como “Benefício fiscal” está a Havan (lojas de departamento), com crescimento importante de faturamento nos últimos anos, e chama atenção também o fato de o seu proprietário, Luciano Hang, ter passado a integrar a lista de bilionários da revista Forbes na edição de 2019. (Nota: Em 1999, a Havan foi autuada pela Receita Federal em R$ 117 milhões e em R$ 10 milhões pelo INSS por sonegação e recorreu a um financiamento da dívida por meio do Refis, com prazo de 115 anos).
Entre os grandes devedores que alegam não ter dinheiro para pagar dívidas fiscais estão empresas ativas, conhecidas e que registram lucros significativos, como os bancos Itaú (lucro de R$ 13,9 bilhões no primeiro semestre de 2019) e Original, a holding J&F Investimentos, dona do frigorífico JBS que teve lucro de 563 milhões em 2018
EC – São sonegadores, portanto?
Anelise – O direito de discutir uma dívida ou questionar é assegurado constitucionalmente, e muitas vezes se estende por décadas. E há a dificuldade em cobrar aqueles que praticam fraude ou ocultam patrimônio para se livrar de suas obrigações fiscais. Esse é mais um dos gargalos do sistema tributário brasileiro, que potencializa o quadro de devedores, mas esse é um argumento que corrobora a importância e urgência de uma Reforma Tributária no país (que não é a mesma coisa que simplificação tributária).
EC – Por que a PEC da reforma é limitada e não efetiva?
Anelise – O governo, ao defender a PEC 6/2019, justifica que uma ação para enfrentar esses desafios foi o envio do projeto de Lei 1.646/19 ao Congresso, em março. Contudo, o projeto tem muitas limitações, pois não acaba com o Refis e indica acabar com débitos do agronegócio, por exemplo – de acordo com a Federação Nacional das Empresas de Serviços Contábeis e das Empresas de Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisas (Fenacon), entre os deputados e senadores eleitos em 2018, 15 parlamentares da bancada ruralista estão devendo cerca de 90% do montante de débitos desse setor (R$ 17 bilhões). O que deixa muitas dúvidas sobre a efetividade desse projeto, podendo servir apenas como um argumento vazio, sendo necessário algo mais detalhado e abrangente. (Uma mudança no substitutivo da reforma da Previdência pode abrir brecha para que o perdão de dívidas do Funrural seja aprovado no futuro pelo Congresso).
EC – Por que a reforma não mexe nos Refis?
Anelise – No Brasil, nos últimos 18 anos já se concedeu quase 40 programas de refinanciamento, conforme divulgado pela Secretaria da Receita Federal, e que prevê parcelamentos para as dívidas das empresas, que variam de 60 a 180 meses, tendo alguns até sem prazo definido, enquanto a média, em outros países é de 12 ou 24 meses, conforme estudo da OCDE. O Refis brasileiro é um incentivo para a geração de débitos e funciona como um financiamento mais acessível monetariamente. Nesse aspecto, a PEC prevê limitar por cinco anos (60 meses) esses programas, o que não parece razoável com base na cultura brasileira e as experiências internacionais, porque representa quase três vezes mais que o máximo concedido em outros países.
EC – Por que o governo não cobra os devedores da Previdência?
Anelise – O governo reitera que a cobrança dos devedores não soluciona a questão da Previdência, porque se trata de estoque e o problema da Previdência é de fluxo. Contudo, não é bem assim, a cobrança e ações que inibam o incremento de novos e maiores devedores ajudarão a compor as soluções de longo prazo e solucionam as de curto prazo para que haja o planejamento e discussão adequada pela sociedade na mudança de uma política pública centenária, como a da Previdência. A classe trabalhadora sabe que não é isso que vai resolver. A classe trabalhadora quer trabalhar, mas não consegue emprego, quer um emprego formal, mas acaba dependendo da informalidade para sobreviver.
EC – Qual o impacto da desocupação e do desemprego?
Anelise – Por exemplo, no mercado de trabalho brasileiro, em 2018, de acordo com Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar/IBGE, registrou-se 92 milhões de ocupados. Sendo que 33,6 milhões não contribuíram para a Previdência Social. Portanto, quase 37% da população ocupada. Repare que não se falou em desempregados, que seriam mais 12 milhões de pessoas, falou-se somente em ocupados. Em um caso hipotético, se todos os ocupados pudessem estar devidamente registrados, com contribuição para a Previdência, com base em um salário mínimo, essa medida resultaria em aproximadamente R$ 134 bilhões por ano para a Previdência. E, nesse caso, não se trata de estoque e, sim, de fluxo.
EC – Qual o impacto dessas dívidas nas contas do sistema de seguridade?
Anelise – A cobrança adequada dos devedores poderia dar um pouco mais de fôlego para a elaboração e implementação das políticas de impacto no mercado de trabalho. O equilíbrio financeiro da Seguridade Social não requer a criação de novos impostos e tributos, no curto prazo. A retomada da economia com a recuperação dos empregos e o cumprimento dos artigos 194 e 195 da Constituição Federal (CF) de 1988 – o que nunca ocorreu desde 1989 – seria a decisivo.
EC – O financiamento da seguridade social é justo com os trabalhadores?
Anelise – Para o trabalhador importa que ele paga os tributos que financiam a seguridade social, seja através do seu contracheque, recebendo uma remuneração “menor” em função do pagamento da cota patronal que o empregador deve pagar (sim, porque o empregador inclui como custo do trabalho), ou seja diretamente ou quando adquire produtos e/ou serviços, uma vez que eles estão embutidos nos preços – contrariando o previsto na Constituição Federal, artigo 195, que diz que cabe às empresas, e não aos clientes delas, o repasse de recursos cobrados sobre seu faturamento bruto.
EC – Por exemplo?
Anelise – Um exemplo é a conta de luz, na qual o trabalhador vê destacado o imposto para a seguridade. Muitas empresas, por sua vez, não repassam essas contribuições por entendimentos diversos, disputas judiciais, e, para o trabalhador brasileiro, restaria, a pedido do governo, um esforço que significa prolongar significativamente seu tempo de contribuição, sem a garantia de conseguir um trabalho, e reduzir substancialmente o valor da sua aposentadoria. Portanto, não parece correto exigir dos trabalhadores tais sacrifícios, enquanto os verdadeiramente ricos e privilegiados na sociedade, os que estão no topo da pirâmide de renda e riqueza, são poupados de qualquer contribuição para o ajuste fiscal.