A proposta de reforma da previdência (PEC 06/2019) apresentada pelo atual governo foi impositiva, sem diálogo técnico democrático e qualificado com os trabalhadores e seus representantes. Trata-se de uma Emenda meramente fiscalista, dissociada da realidade do mercado de trabalho. Sem a menor sombra de dúvidas, se aprovada, poderá agravar a desigualdade social e destruir o Estado Social de 1988.

O governo apresenta sua Reforma como panacéia, remédios para todos os males, econômicos e sociais: sem a reforma o futuro das aposentadorias e pensões estará ameaçado, o país não crescerá, o Estado não terá como honrar seus compromissos, e o desemprego, a taxa de juros e a dívida bruta rumarão para a estratosfera. Com a reforma seremos capazes de equacionar o aumento da pobreza. O governo não diz a verdade!

Impossível falar de previdência sem se ater aos princípios da Seguridade Social, cuja proposta do governo quer destruir. A Seguridade é um conjunto de ações de responsabilidade dos poderes públicos nas áreas de saúde, previdência e assistência social voltado para a construção de uma sociedade democrática, com bem-estar e justiça social. Assim, é um equivoco tratar a previdência somente dentro de um escopo fiscal. Essa que é a nossa maior rede de proteção social, de caráter redistributivo e financiada de forma tripartite (empregado, empregador e governo), tem sua raiz no Welfare State, na proteção social como direito de todos os cidadãos. 

A Emenda do governo caminha no sentido de limitar essa proteção e a cidadania, Constitucionalmente inscritas. É justo que o Benefício de Prestação Continuada (BPC), dirigido ao núcleo mais fragilizado da nossa sociedade (cerca de 2 milhões de pessoas com 65 anos ou mais de idade; 2,6 milhões de deficientes, ambos com renda per capita de até ¼ do Salário Mínimo - SM), cujos benefícios equivalem ao piso do SM, seja reduzido para R$ 400,00/mês aos 60 anos (1 SM somente aos 70 anos)? 

É justo aumentar a idade de aposentadoria da mulher, assalariada rural, de 55 para 60 anos e aumentar o tempo de contribuição de 15 para 20 anos (ambos os sexos)? se a maioria da população campesina inicia o labor com 14 anos ou menos de idade, é justo fazê-la trabalhar por 45 anos em atividades penosas, exaustivas muitas vezes? Porque não manter a diferenciação da idade de aposentadoria de homens e mulheres (60h/55m anos) no meio rural, se pela Proposta permanece uma diferença no meio urbano (65h/62m)? é justo aumentar idade para o segurado especial e fazê-lo pagar R$ 600 por ano (por grupo familiar) para que ele possa se aposentar? secas, excessos de chuvas, ataques de pragas, baixos preços de venda, não são critérios a serem analisados? Como ele irá complementar esse valor diante desses infortúnios?

O governo não apresenta diagnóstico correto sobre o que já foi reformado e o que falta reformar, sonega informações e bases técnicas e atuariais implícitas à proposta. Nesse sentido, o recém divulgado #TransparênciaNovaPrevidência é um total engodo. Continuam a não apresentar os fundamentos atuariais. Onde estão as características de risco e incertezas ligados ao perfil etário da população, estudos de cenários? onde estão as características evolutivas das famílias, a estrutura remuneratória dos beneficiários e pensionistas (RGPS, RPPS, Militares no curto, médio e longo prazos)? dados biométricos como falecimento e invalidez e estudos de aderência de hipóteses? numa análise atuarial, essas e muitas outras questões se relacionam com fluxos de receitas e despesas para minorar os riscos.

Trata-se de afronta à democracia, pois a sociedade, por meio da Lei de Acesso à Informação, tem o direito de ser informada sobre as razões técnicas que justificam a radical mudança do modelo de sociedade pactuado em 1988, como também deve participar de possíveis soluções relativas às mudanças. E quanto mais o governo alonga em relatar contundentes pareceres técnicos da Proposta, mais soa a falta de transparência, uma espécie de “cortina de fumaça”!

O governo quer economizar R$ 1 trilhão em dez anos com a PEC. Esquece-se de que as  buscas antecipadas por aposentadorias em virtude do caráter excludente das reformas iminentes – como ocorreu com a EC nº 20 de 1998 e com a PEC 287 de 2016 – provocam efeito contrário, aumentando os gastos com pagamento de benefícios. Os formuladores da política econômica austera deveriam saber que não se consegue ajuste fiscal com reformas excludentes da Previdência.

O que o governo tem a nos informar sobre os custos de transição de um regime solidário de repartição para um regime de capitalização individual? No Chile, por exemplo, o custo dessa mudança, entre 1981 e 2015 (34 anos), situou-se em 136% do PIB . Projetando esse mesmo percentual para o Brasil, trata-se de um valor próximo de R$ 9 trilhões. Como se fará o ajuste fiscal e quem pagará essa conta?

Se o sistema de capitalização fosse melhor que o de repartição e bom para uma sociedade, não estaríamos presenciando a “re-refroma” de diversos países. Segundo a OIT , de 1981 a 2014, trinta países privatizaram total ou parcialmente suas pensões públicas obrigatórias; até 2018, dezoito países reverteram suas privatizações, também de forma parcial ou total, o que demonstra, para a OIT, que a capitalização é falha. Por outro lado, o fortalecimento do seguro social público, associado a pensões solidárias não contributivas, conforme recomendado pela própria OIT, melhorou a sustentabilidade financeira dos sistemas previdenciários, tornou os direitos previdenciários possíveis e previsíveis. A responsabilidade dos Estados de garantir a segurança de renda na velhice é mais bem alcançada com o fortalecimento dos sistemas públicos de previdência, diz a OIT. 

O governo alega que a capitalização, a ser definida por Lei Complementar, será “uma opção” atrativa para os trabalhadores mais jovens. Triste ilusão que revela total desconhecimento da realidade do mercado de trabalho brasileiro, marcada por empregos precários de curta duração, pelo desemprego e pelo desalento. Quantos brasileiros conseguirão contribuir por 35 anos ininterruptos para ter acesso ao benefício? com regras mais duras de acesso, com enorme dificuldade de diversos contingentes em se aposentar, a capitalização, principalmente para esses trabalhadores mais jovens e para os menos informados, irá parecer melhor alternativa.

O governo parece “desconhecer” que há mais de uma década o Chile tenta reverter seu sistema. Os chilenos querem ser o Brasil e o atual governo que ver o Brasil se tornar o Chile. Diferente das promessas feitas pelo governo Pinochet, fazendo a população acreditar numa aposentadoria com 100% do salário da ativa em 2020, hoje qualquer chileno sabe que o sistema privilegia apenas os mais abastados, pois estes foram (e continuam sendo) os únicos a terem condições de contribuir e auferir uma aposentadoria digna. Aos mais pobres têm restado receber a Pensão Básica Solidária (PBS), um valor mínimo que corresponde, atualmente, a 40% do salário mínimo (equivalente a pouco mais de R$ 600,00). Considerando-se, dentre outros aspectos, períodos de crise econômica, desemprego, doenças e invalidez, nota-se que cerca de 80% das pessoas que conseguiram se aposentar no Chile receberam valores menores que o salário mínimo; e 44% estão abaixo da linha da pobreza.

Com evidentes inconsistências, cabe a pergunta: a quem interessa a Reforma da Previdência? talvez à instituições financeiras e bancos, como  o BTG Pactual, por exemplo, que, em sua página oficial no Chile, informa que tem “sido um dos maiores distribuidores de fundos internacionais, fundos de investimento e fundos de private equity, entre clientes institucionais no Chile, Peru e Colômbia, principalmente entre Fundos de Pensão e Companhias de seguros” . No Chile, o BTG controla a AFP PlanVital, um dos poucos fundos de pensão remanescentes da capitalização de 1981. Como o objetivo do BTG é o de expandir seus negócios, a reforma da previdência social brasileira a ele interessa; mas não a maioria dos trabalhadores brasileiros.

*Juliano Musse é economista e técnico do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese)/ SS Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef).

Fonte: Valor Econômico