Jair Bolsonaro, Rodrigo Maia e Paulo Guedes (Foto: Carolina Antunes - PR)

Antes de entrar propriamente dito no argumento central que proponho nessa reflexão, a saber: que o teto dos gastos fere e asfixia democracia – quero tecer alguns comentários de ordem mais geral.

O primeiro deles é que a aprovação do Teto de Gastos, em 2016, partiu de uma premissa equivocada. Se é certo que desde 2014 o Brasil passou a incorrer em desequilíbrio fiscal – ou seja, a gente passou a gastar mais do que a gente arrecadava – é certo, também, que para solucionar esse desequilíbrio a gente teria, pelo menos, dois caminhos. No entanto, depois de marteladas tantas vezes na nossa cabeça a idéia de que o Estado não pode gastar mais do que arrecada, a gente achou – por óbvio – que o ajuste desse desequilíbrio teria que ser feito, necessariamente, cortando gastos.

Você já parou para pensar que se um Estado gasta mais do que arrecada ele poderia solucionar esse desequilíbrio arrecadando mais? Pois bem, esse foi só um exemplo, mas que serve para demonstrar que isso não foi sequer cogitado (provavelmente por você, leitor). O que está por trás disso é a percepção de que em economia só há um caminho possível, como se economia fosse uma ciência puramente técnica ou neutra.

Em segundo lugar, corrigir o gasto primário do Estado pela inflação do ano anterior é completamente descabido! Não existe nenhum paralelo desse tipo de regra fiscal no mundo. Isso porque em momentos como esse, em que a inflação está muito baixa porque as pessoas estão desempregadas e por isso não estão consumindo, o Brasil terá um investimento real em 2021 muito menor do que teve no ano anterior. Em segundo lugar você poderia até ter uma regra de teto de gastos, mas ela – no mínimo – teria que ser vinculada a variáveis como crescimento econômico e crescimento populacional, e não a inflação do ano anterior. O teto de gastos corrigido pela inflação não tem nenhuma relação com as principais variáveis macroeconômicas.

Em terceiro e último lugar, o Teto dos gastos fere de morte não só a população brasileira que ficará mais desprotegida em um período de grave crise econômica, mas fere – sobremaneira – a democracia.  

O argumento que sustentou a emergência do neoliberalismo foi, justamente, o de que as experiências de Estado de Bem-Estar Social teriam incorrido em um “excesso de democracia” e que isso levou a grave crise econômica desses países nos anos 1970. Eles alegavam o seguinte (e veja a atualidade desse argumento): o Estado Nacional teria sido “capturado” por interesses particulares de agentes corporativos, principalmente os sindicatos e os movimentos sociais, que reivindicavam mais direitos e mais políticas sociais. Com isso o Estado foi coagido a elevar o seu volume de gastos – porque ele estava sujeito a pressões políticas – e isso gerou inflação que gerou a crise. A conclusão é: passe a definição para o “mercado” ou coloque ela em Lei, mantendo essas decisões longe de pressões sociais.

Acontece, meus amigos, que isso que eles chamam de “pressões políticas e sociais” eu chamo de democracia. O que está por trás desse argumento e dessa absurda regra fiscal, é que quem vai decidir quanto e onde o Estado emprega os seus recursos é a lei, é o “mercado”. Isso significa esvaziar o Estado Nacional brasileiro de política. Você vai, com isso, amarrando as mãos dos governantes dentro de regras ficais, o que os impedem de aplicar um conjunto de políticas de sociais que são o clamor das urnas. Daqui há pouco votar para Presidente vai ser análogo a votar para síndico de prédio, ou seja, alguém que apenas regula relações e interesses díspares. Isso é um atentado à democracia. Definir em lei, a priori, o montante de variação do gasto social é delegar uma decisão soberana aos “técnicos” que pensaram essa regra fiscal. Acontece que nesses “técnicos” nós não votamos. E isso é antidemocrático.  

A pressão política da sociedade, dos movimentos sociais, do movimento sindical – por exemplo – nada mais é do que o livre exercício da cidadania ativa e democrática, no sentido de que é papel da sociedade brasileira definir, soberanamente, os rumos da política econômica, apontando onde, como e quanto deverá ser o gasto social em cada uma das políticas sociais.  

* Juliane Furno é doutoranda em Desenvolvimento Econômico na Unicamp, assessora parlamentar da Câmara Federal e militante do Levante Popular da Juventude e da Consulta Popular

Publicado em Brasil 247