Guedes é uma espécie de açougueiro gourmet. Sem saber o que fazer com a administração pública, Guedes prefere fingir que está cortando na carne, e vende gato por lebre chamando-a de picanha.

PEC da reforma administrativa renomeia o que já existe (cargo de liderança), joga para escanteio debate que importa (avaliação de desempenho, avaliação e gestão de processos), mantém intactos os privilégios das carreiras do alto funcionalismo, e corrói a estabilidade que separa, já com falhas, funcionalismo de pressões políticas e econômicas.

Que fique claro, o país precisa de uma reforma administrativa, mas a de Guedes não é digna deste nome, de tão genérica que é. Como lembrou Lotta (da FGV), uma reforma deveria tratar melhor de gestão de pessoas, estrutura organizacional e relação com organizações não estatais que fornecem serviços. A de Guedes não o faz.

Ao focar em servidores e não em gestão pública, a reforma do CEO Guedes é a faceta "farialimer" de um presidente que une corporativismo de farda com histórico desprezo por políticas sociais.

Por que então mercado, parte da imprensa e governo compram a picanha de gato de Guedes?

Hipótese 1: reforma proposta mantém intactos os incentivos à corrupção dentro do Estado. Literatura internacional esclarece que estabilidade é uma barreira à corrupção (ver Robert Wade sobre Índia e Sarah Brierley sobre Gana). No Brasil, Bugarin e Meneguin mostram que, embora falte inovação, entre 2002 e 2013 maior corrupção ocorreu nos ministérios com maior percentual de cargos de confiança.

Hipótese 2: reforma proposta facilita concentração de poder, logo ineficiência. Cabe a Guedes explicar por que dar mais poder ao presidente para extinguir órgãos e carreiras públicas, sem precisar de lei. ERRA A FOLHA em editorial neste domingo (13) ao escolher um mau exemplo (EUA), para apoiar a reforma, porque é justamente a burocracia dos EUA que protegeu o país dos desmandos de Trump (ver Lewis no livro “O Quinto Risco”).

Por aqui, são Ibama, ICMBio e Funai e seus servidores que não deixam a nossa democracia ou as florestas pegarem ainda mais fogo.

Hipótese 3: reforma atual alimenta fetiche por menos Estado, sem se dar ao trabalho de explicitar com dados o que de fato torna o Estado ineficiente. Reestruturar carreiras para criar incentivos à eficiência, regulamentar avaliação de desempenho, implodir penduricalhos podem ser feitos por lei, não PEC, nos lembra Sundfeld (FGV). Da lei à gestão, ineficiência mora, em parte, na burocracia ocupada por gestores comissionados que não monitoram ou avaliam políticas, nos lembra Graziane (FGV). No primeiro ano do governo Bolsonaro*, aliás, dobrou o número de comissionados filiados ao PSL e ao Novo no governo federal* segundo dados de agosto divulgados na Piauí.

Hipótese 4: precarizar o Estado é projeto de país. De um lado, nos distrai dos privilégios fardados e togados mantidos pela reforma, nos lembra Grisa (IFRS). De outro lado, precariza os serviços públicos sociais, onde os salários são baixos, criando incentivos para que a população utilize alternativas privadas. Para o PIB que ocupa o Estado, mais planos de saúde e mais escolas privadas de baixa qualidade são melhores do que investir em custo-qualidade do serviço público, debate ao qual o governo é refratário.

Precarização dos sistemas de saúde e educação municipalizados, debate sobre o lado da receita, pouco controle sobre organizações não estatais, muitas delas de cunho religioso, não estão na mesa de Guedes. 

Modernizar o Estado, para Guedes, é tornar a burocracia pré-moderna.

Mitos e ideologias por trás da reforma de Guedes dirão que o debate é entre Estado maior e engessado, de um lado, e Estado menor e mais eficiente, de outro, num exemplo de "doisladismo" improdutivo. O corte desta carne é mais profundo: há muitos interesses políticos no espectro da esquerda à direita e interesses privados por trás da picanha que é o Estado.

As classes mais pobres, e negras, amargam os ossos que sobram.

* Thiago Amparo é advogado, professor de políticas de diversidade na FGV Direito SP

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