O regime jurídico do Banco Central deveria merecer estudo detido dos analistas das finanças públicas, já que sua atuação infralegal – direta ou indiretamente – enseja despesas financeiras que anualmente superam o volume de recursos alocado no Orçamento de Guerra, emergencialmente aprovado pela Emenda 106/2020 para fazer face à pandemia da Covid-19. Todavia a ordem de grandeza do impacto na dívida pública das decisões do BC é inversamente proporcional à atenção usualmente dedicada a ele pelos operadores do Direito Financeiro no Brasil.

O peso proporcional das decisões do BC para a dívida pública pode ser exemplificado, entre outros fatores, pela repercussão da taxa básica de juros e das operações compromissadas, que a autoridade monetária maneja para gerir o nível de liquidez na economia. A esse respeito, é referencial o achado da tese de doutorado “Operações Compromissadas: teoria e análise do caso brasileiro (2000 – 2020)”[1], de Flávia Félix Barbosa, orientada pelo professor Fábio Bittes Terra, de que:

“[…] os juros e outras variações patrimoniais foram responsáveis por R$ 870,536 bilhões da variação do saldo das compromissadas do final de 2002 até o final de 2020, o que equivale a 70,0 p.p. da variação nominal do estoque de R$ 1.244,574 trilhão. […] Enquanto o impacto dos juros nominais e outras variações patrimoniais representaram R$ 870,536 bilhões (70,0 p.p.) da variação nominal do estoque em dezembro de 2020, o impacto das operações do Tesouro Nacional foi de apenas R$ 11,628 (0,9 p.p.) e o impacto das operações do Banco Central correspondeu a R$ 362,409 (29,1 p.p.) […]. Em proporção do PIB, tem-se aumento contínuo dos juros nominais e outras variações patrimoniais no período.”

Falta clareza à sociedade brasileira sobre o basilar diagnóstico de que a dívida pública recebe, concomitantemente, os influxos da política fiscal conduzida pelo Tesouro Nacional e da consecução das políticas monetária, cambial e creditícia a cargo do Banco Central.

No senso comum, o endividamento público é tratado tão somente como um desafio a ser equacionado mediante contenção das despesas primárias e, episodicamente, por meio da expansão da arrecadação tributária. São raras as ocasiões em que a compreensão dos fatores determinantes de expansão da dívida pública é alargada, sendo necessário recomendar, nessa opaca e negligenciada seara, a leitura do Acórdão TCU nº 1084/2018-Plenário.

Por mais difícil que seja chamar a atenção para tal agenda de estudos, é preciso insistir na sua centralidade. Ilustra sua relevância a notícia do portal G1 de que a repercussão dos juros no Orçamento Geral da União em 2023 superou o somatório das despesas com saúde, educação e assistência social:

“Segundo informações oficiais, as despesas pagas pelo Ministério da Saúde somaram R$ 170,26 bilhões no ano passado, enquanto aquelas dos Ministérios da Educação e do Desenvolvimento Social, respectivamente, totalizaram R$ 142,57 bilhões e R$ 265,291 bilhões. Um total de R$ 578,13 bilhões.

As despesas com juros da dívida pública do Governo Central somaram R$ 614,55 bilhões em 2023, contra R$ 503 bilhões em 2022. Elas perderam apenas para o Ministério da Previdência Social – responsável pelo pagamento dos benefícios de aposentados, pensionistas e de programas sociais, como o BPC, que totalizaram R$ 861,6 bilhões no último ano.” (grifos em negrito conforme o original)

Se a ordem de grandeza dos números envolvidos alcança a casa de algumas centenas de bilhões de reais, a normatividade que rege a atuação do Banco Central deveria exigir redobrada cautela de todos os operadores do Direito. Infelizmente não é isso o que tem ocorrido.

Necessidade de regulamentação da LC 179/2021

No próximo sábado completam-se três anos de vigência da Lei Complementar 179/2021, que fixou mandato quadrienal em favor do quadro diretivo da autarquia e, em contrapartida, obrigou-a ao cumprimento de quatro objetivos estatutários, a saber: assegurar a estabilidade de preços, zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego. Muito embora haja ascendência do primeiro sobre os três outros objetivos (parágrafo único do artigo 1º), todos devem ser perseguidos, sendo que a frustração do alcance de cada qual deve ser motivada, sob pena de responsabilização, na forma do inciso IV do artigo 5º da LC 179/2021.

Não obstante a clara dicção do mencionado inciso, até os presentes dias nenhuma regulamentação foi editada para explicitar os critérios e o devido processo de aferição do desempenho dos diretores e do presidente do Banco Central na consecução da pluralidade dos seus objetivos legais. É, no mínimo, controverso e paradoxal o contexto em que a autoridade monetária ganhou liberdade decisória, mas não há parâmetros normativos para avaliar se, de fato, a autonomia concedida pela LC 179/2021 tem alcançado as finalidades legais que lhe justificaram a concessão.

Desde 24 de fevereiro de 2021, a autarquia opera sob regime especial de autonomia funcional dos seus dirigentes, mas seu presidente almeja ampliá-la e, por isso, passou a defender a suposta necessidade de o BC obter “autonomia técnica, operacional, administrativa, orçamentária e financeira, organizada sob a forma de empresa pública e dotada de poder de polícia, incluindo poderes de regulação, supervisão e resolução”. Eis a alteração nuclear a ser inserida no artigo 164 da Constituição, por meio da PEC nº 65/2023 (inteiro teor disponível aqui).

Ao invés de ampliar a autonomia já concedida ao Banco Central brasileiro, é preciso regulamentar o alcance das suas finalidades precípuas, sem que seja possível invocar a hipótese oblíqua e juridicamente inepta de que o Decreto nº 3.088, de 21 de junho de 1999, que tratou apenas do regime de metas de inflação, seria suficiente para compreender o alcance de todos os objetivos legalmente atribuídos à autarquia.

A Lei Complementar 179/2021 precisa ser regulamentada, na forma do artigo 84, IV, da Constituição, para assegurar efetivo cumprimento a todos os objetivos do BC, os quais perfazem a finalidade indissociável da autonomia que lhe foi conferida pelo ordenamento. É oportuno e necessário, pois, um decreto presidencial que concomitantemente regulamente a LC 179/2021 e reveja o Decreto 3.088/1999. Isso porque, a partir de 2021, foram alteradas as condições em que o país havia celebrado seu contrato anteriormente vigente desde 1999 em torno do sistema de metas de inflação.

Ora, no âmbito do Direito Público, qualquer regime jurídico que confira autonomia pressupõe necessariamente correlata aferição de responsabilidade em torno do adequado alcance dos fins que justificaram aludida liberdade majorada. Essa é uma decorrência lógica da relação de instrumentalidade entre poderes e deveres de quem atua em nome dos interesses da sociedade.

Muito embora tal concepção seja trivial para os operadores do Direito, pretender sua implementação cotidiana no âmbito da política monetária ainda soa como se fosse uma agenda quase revolucionária. Todavia é preciso pautar a necessidade de um devido processo administrativo para que se possa verificar, em especial, a ocorrência da hipótese prevista no artigo 5º, inciso IV da Lei Complementar nº 179/2021. Interessa-nos, aqui, refletir sobre a ainda frágil densidade normativa da sanção disciplinar de perda de mandato aplicável ao presidente e aos diretores do Banco Central “quando apresentarem comprovado e recorrente desempenho insuficiente para o alcance dos objetivos” legais atribuídos à autarquia.

O nó górdio do arbitrário regime jurídico do BC

Há três anos, reitere-se, foi conferida formalmente autonomia funcional aos agentes públicos responsáveis pela condução da política monetária no Brasil, mediante mandato quadrienal instrumentalmente vinculado ao alcance dos objetivos previstos no artigo 1º da LC 179. Não obstante isso, ainda persiste sem qualquer regulamentação o fluxo procedimental sobre como serão equacionados os objetivos, por vezes, conflitantes da estabilidade de preços, de um lado, e do fomento ao pleno emprego e da suavização dos ciclos econômicos, de outro; enquanto o objetivo de estabilização do sistema financeiro segue pragmaticamente consensual e, por isso, pouco exposto a divergências ou tensões.

Fato é que, na ausência de balizas normativas objetivas, impera razoável controvérsia sobre o nível de transparência e de motivação no processo administrativo conduzido pelo Banco Central para perseguir concomitantemente os quatro objetivos que lhe franquearam regime especial de autonomia. O nó górdio do ainda opaco e potencialmente arbitrário regime jurídico do BC reside na redação dúbia do parágrafo único do artigo 1º da LC 179/2021, porque ali foi fixada uma espécie de subordinação dos objetivos complementares de “zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego” ao objetivo fundamental de “assegurar a estabilidade de preços”.

Controle da inflação e a pluralidade de objetivos

Mesmo após o advento da LC 179, o Banco Central mantém seu modo de operação direcionado quase exclusivamente ao controle da inflação, na medida em que apenas residualmente foi alterada a motivação das suas decisões para sustentar a tese implícita de que o alcance dos outros três outros objetivos seria uma decorrência natural da defesa da estabilidade de preços.

É como se a autoridade monetária, a pretexto de controlar a inflação, simplesmente negasse a necessidade de qualquer medida especificamente direcionada ao alcance das demais finalidades que lhe justificaram o regime legal de autonomia. Ora, uma coisa é subordinar os objetivos complementares ao objetivo fundamental, mas buscar alcançá-los em diferentes níveis e velocidades de consecução intertemporal; outra coisa muito diversa é simplesmente ignorar parte dos objetivos, pressupondo que eles serão obtidos por obra espontânea do mercado, após a estabilização dos preços.

Não é demasiado lembrar, pois, que a diferença entre o veneno e o remédio reside na sua dosagem. Eis a razão pela qual saber a proporcionalidade adequada para equalizar a pluralidade de objetivos a cargo do BC é uma escolha de alta relevância não só para a economia, mas para toda a sociedade, dada a considerável repercussão dos juros para o custo de carregamento da dívida pública brasileira.

Problema se sucede quando o nível de emprego e o próprio impacto fiscal da política monetária para a dívida pública são desproporcional e abruptamente afetados pela velocidade e pela intensidade da elevação da taxa básica de juros, bem como por sua manutenção em patamar alto por um intervalo de tempo significativamente dilatado.

Vale lembrar que o BC empreendeu de março de 2021 a agosto de 2022 uma significativa majoração da taxa Selic, subindo-a de 2% para 13,75%. Em agosto de 2023, foi iniciado o ciclo de cortes da taxa Selic, mas em ritmo tão suave, que o patamar atual de 11,25%, quando contrastado com o arrefecimento da inflação, em termos práticos, implica — direta ou indiretamente — a escolha pela expansão da taxa real de juros ao longo do último ano. Isso explica porque a taxa real de juros no Brasil encerrou 2023 como a segunda mais elevada em todo o mundo, perdendo apenas para o México.

A equação é deveras complexa e foi bem resumida pelo vice-presidente Geraldo Alckmin:

“Quase metade da dívida pública brasileira é selicada [indexada à Selic]. Então, cada 1% da taxa Selic custa R$ 38 bilhões [de pagamento do serviço da dívida pública]. Não há nada pior para a questão fiscal do que uma Selic desnecessariamente elevada. Então, R$ 38 bilhões a cada 1%, se você tem uma taxa 5% acima do que deveria estar, isso custa praticamente 190 bilhões […] Você fica fazendo economia de um bilhão, meio bilhão, e acaba gastando aí quase R$ 200 bilhões em razão de ter uma taxa Selic nessa altura”.

O cálculo aventado pelo vice-presidente, em meados de 2023, de um custo de cerca de R$ 190 bilhões anuais pela manutenção da taxa Selic em patamar de 5% acima do que seria supostamente razoável para a realidade econômica do país expressa precisamente o desafio de equalizar a proporcionalidade no alcance de todos os objetivos que o Banco Central foi legalmente incumbido de perseguir.

Tamanha é a repercussão fiscal dos juros que se revela, no mínimo, irônico o fato de o Banco Central manejar, como argumento para manter a taxa Selic alta, um controverso risco de insustentabilidade da trajetória da dívida pública. Conforme defendemos em artigo especificamente destinado ao exame dos limites da atuação discricionária do BCB, é nula a decisão da autoridade monetária que se lastrear no motivo insubsistente da trajetória da dívida pública, usurpando competência do Congresso Nacional e do Tribunal de Contas da União, dada a lacuna normativa relativa aos limites de dívida mobiliária e consolidada da União e considerada a própria falta de lei complementar que esclarecesse a noção de sustentabilidade da dívida pública (respectivamente artigos 48, XIV, 52, VI e 163, VIII da CF/1988).

Mas não apenas isso se coloca como desafio, porque a forma como o Banco Central capta as expectativas de inflação junto a cerca de apenas 140 instituições financeiras e as internaliza como insumo informacional relevante para seu ciclo decisório dá ensejo a risco potencial de conflito de interesses, como esta articulista e Simone Deos expusemos aqui.

As controvérsias se avolumam, sem que lhes seja contraposta uma robusta processualidade administrativa que resguarde transparência, motivação e impessoalidade para o ciclo decisório da autoridade monetária e, sobretudo, que avalie o alcance de todos os objetivos legalmente impostos ao Banco Central como seus deveres inalienáveis.

Como não há palavras inúteis na lei e como há a expressa previsão de perda de mandato por “comprovado e recorrente desempenho insuficiente para o alcance dos objetivos do Banco Central do Brasil”, impõe-se a devida regulamentação da LC 179/2021 para que se possa — consistentemente — monitorar a pluralidade de tais objetivos, bem como para haja uma efetivamente adequada correlação entre autonomia e responsabilidade dos seus diretores e presidente.

Sem um devido processo administrativo de avaliação de desempenho da política monetária (accountability), a autonomia conferida aos dirigentes do Banco Central corre o risco de se corromper em arbitrariedade avessa aos limites do ordenamento constitucional brasileiro, capaz de impor impactos extremamente danosos ao erário e à sociedade. Após três anos de lacuna normativa, nada justifica a omissão em regulamentar a Lei Complementar 179/2021.

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[1] Tese de doutorado em Economia defendida em 2022, que se encontra disponível em https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/34681/1/Opera%C3%A7%C3%B5esCompromissadasTeoriaAnalise.pdf.

* Élida Graziane Pinto é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

Publicado no Conjur em 20 de fevereiro de 2024, 8h00